Desenho de Taciane, minha filha com sete anos.
Félix era um homem
sexagenário de estatura baixa, imigrante nordestino, portanto, forte e
renitente. Trabalhou a vida toda na construção civil. Começou como servente de
pedreiro. Alguns anos depois, ascendeu
para mestre de obra. Ao se aposentar, montou uma equipe com seus amigos,
formada por pedreiro, carpinteiro, armador e ajudante. Trabalhavam como
empreiteiros fazendo desde reforma de casas até prédios. Quem não o conhecia
duvidava de sua capacidade e resistência. Alguns eram até maldosos nos seus
comentários: “Esse velho vai morrer de enfarte ainda na fundação deste edifício”.
Mas, quando começava a trabalhar, Félix se agigantava causando admiração em
todos, até nos transeuntes. Tinha quatro filhos e uma filha e enviuvou na média
idade. Nenhum filho quis seguir sua profissão, embora o explorassem
economicamente. Vivia se queixando que eles somente serviam para “beber cachaça”
e que eram indolentes.
Diante de um ofício que requer tanto esforço físico,
adquiriu uma hérnia no baixo ventre, envolvendo até o púbis. À medida que ele
se esforçava, a hérnia aumentava, porém não procurava médico, aliás, nunca fora
hospitalizado nem sequer fizera um único exame em toda sua vida. Vivia falando
que odiava hospital, sobretudo, consulta, por causa das dificuldades diante da
burocracia e do sucateamento do sistema de saúde pública. Em virtude da
saliência, a hérnia já estava à vista e ele já estava se incomodando com as
perguntas de curiosos indiscretos e também com os epítetos. Seus amigos lhe confortavam
dizendo que era uma cirurgia muito simples e um lhe mostrara que fizera uma e
que foi bem sucedida. Como sua filha conhecia uma amiga que trabalhava no INSS,
em razão disso, tudo foi facilitado e agilizado desde os exames até a marcação
da intervenção cirúrgica. Diante de qualquer dificuldade, ele queria desistir,
no entanto, cada dia a hérnia estava ficando mais grave: a dor contínua e
sintomas de náuseas e vômitos começaram a aparecer, sinal de que estava prestes
a estrangular, por isso, a cirurgia urgia; portanto, o bravo homem não tinha
mais condição de trabalhar, o que para ele era mesmo o fim. Chegou o dia tão
temido. Ele estava tenso. Sua filha o acompanhou. Ficou internado um dia antes
da operação. Numa sexta-feira à tarde, ele finalmente foi operado. O médico avisou
à filha que ele reagira bem e que o procedimento foi bem sucedido, por isso,
diante de poucos dias poderia voltar para casa. Ela ficou muito alegre e
confiante. Logo, logo avisou a todos os demais filhos. Estava muito ansiosa para
rever seu pai assim que acordasse da anestesia, o que ocorreu horas depois e
ela foi correndo ver seu genitor. Félix não se lembrava de nada e indagou para
ela quando seria a operação. A filha respondera que tinha acabado de acontecer
e lhe pediu para não se mexer muito. Um médico disse-lhe que segunda-feira lhe
daria alta, todavia, ainda tinha que ficar em observação. Horas antes de sair
do hospital, ele se queixou de que não conseguia mexer as pernas. Comunicaram
ao médico, que disse que isso era devido à anestesia e que tudo voltaria ao
normal a qualquer momento. Como tinha um corpo franzino, seu filho primogênito
o pegou com facilidade e o colocou num táxi, seguindo para seu tão esperado lar.
Empós cinco dias, ao invés de melhorar, seu estado se agravava ainda mais.
Mesmo contra sua vontade, levaram-no de volta ao hospital. Chamaram o médico
que o operou e logo o examinou todo e pediu uma bateria de exames urgentemente.
Quando saiu o resultado, o médico ficou surpreso e assustado: durante a
cirurgia, ele desviou um pouco a incisão e cortara o Nervo Ciático, nervo este
que controla as articulações do quadril, joelho, tornozelo, músculos
posteriores da coxa, da perna e do pé. Ficou atônito, sem saber o que dizer ou
fazer. Cogitou esconder do paciente ou transferir para outro médico, mas sabia
que, de posse dos exames, o colega descobriria o erro irreversível. Então
deliberou comunicar ao paciente, que ainda estava consciente. Relatou tudo que
acontecera para ele. Félix entendeu.
Não ficou com mágoa do jovem cirurgião,
que lhe pediu mil e uma desculpas e o avisou que ele não escaparia desta
situação. Os dois se abraçaram e choraram copiosamente, o que chamou atenção de
todos, pois se sabe que os médicos têm a síndrome do Esculápio e que são
insensíveis com os pacientes e até com sua morte, uma vez que o sofrimento
alheio faz parte de sua rotina, de seu trabalho. Félix perdoou o jovem médico
e, em seguida convocou todos seus filhos, que se reuniram em torno de seu leito
de morte e lhes comunicou o erro médico. Alguns ensaiaram indignação e revolta,
mas ele fez cada um lhe prometer que jamais faria qualquer coisa contra o
médico. Sete dias depois, o espírito do justo Félix partiu para outro plano.
Bento Sales