Desenho de Taciane, minha filha com seis anos.
Desde quando tinham cinco anos que
Fábio e Cláudio eram amigos. Essa amizade herdaram dos pais. Ambos moravam no
subúrbio, numa casa modesta de madeira, numa rua sem asfalto, pois o bairro era
recém formado. A modernidade só havia chegado lá por meio da energia elétrica.
A água obtinha-se de poço artesiano. Mas as crianças não ligavam para isso:
queriam mesmo era se divertir tomando banho no igarapé que corria numa reserva
florestal próximo. Cláudio tinha somente irmãs e Fábio era caçula de nove
filhos, portanto, dentre seus irmãos, o mais próximo tinha o dobro de sua
idade. Fábio era só um mês mais velho que Cláudio, mas praticamente da mesma
estatura. Este era branco de cabelos lisos e olhos castanhos; aquele era pardo,
olhos pretos e cabelos pixains. Aos quinze anos, a prefeitura teve que canalizar o
córrego devido aos constantes assoreamentos. Como a casa de Cláudio era num
local de risco, a família fora indenizada e teve que se mudar para um bairro
distante do centro da cidade, separando, assim, os amigos. Passaram-se três
anos, sem convívio, vendo-se apenas uma única vez quando foram fazer um serviço
com seus pais. Mas, numa coincidência incrível, os dois se encontrarem na fila
para o alistamento militar no Batalhão de Infantaria de Selva (BIS).
-
Vai servir? Quis saber Fábio.
-
Vou. E você?
-
Também.
-
Que legal! Comemora Cláudio.
Fizeram
todos aqueles treinamentos de guerra juntos, inclusive, a Operação boina, tão
temida por todos, pois exige todo aprendizado de técnicas de sobrevivência numa
guerra e se saíram muito bem, porém viram muitos colegas que passaram mal,
chegando ao desmaio. Todavia, apesar de terem sido condecorados, só completaram
um ano de serviço militar porque concluíram que ganhavam muito pouco e sem
possibilidade de promoção, uma vez que não tinha boa escolaridade porque são de
uma época em que se primava pelo trabalho e não pelo estudo. Ambos escreviam
errado por linhas tortas. Ficaram alguns anos fazendo serviços eventuais de
pedreiro, profissão que aperfeiçoaram no exército. Depois se encontraram
novamente numa fila pleiteando emprego
em uma grande construtora. Os dois conseguiram o trabalho e aí não mais se
separaram. Casaram. As esposas também se tornaram amigas. Fábio teve filhas
gêmeas e Cláudio apenas um filho. Eles continuaram fazendo serviços nas folgas
do trabalho fixo para os amigos e conhecidos para complementar a renda
familiar. Às vezes, um contratava pequeno serviço e se houvesse um impedimento
em fazê-lo, um chamava o outro para ajudar ou concluí-lo numa simbiose admirável.
“Nem irmãos são unidos assim, eles nunca brigaram nem discutiram”, observavam
muitas pessoas. Nas folgas do trabalho, quando não faziam “bicos”, saiam de
bicicleta, "hobby" da dupla, para passear em quase toda cidade, aliás, não
gostavam de condução, faziam seus deslocamentos assim. A empresa chegou a proibi-los, temendo acidente, de se deslocarem de bicicleta do trabalho para
casa e vice-versa, mas eles as deixavam na casa de um amigo que morava próximo
da firma. Também gostavam de sair juntos para beber, pois moravam em bairros
vizinhos. Fábio era calado, sério, mas também sabia se descontrair com as
histórias e piadas do amigo; já Cláudio, era o oposto: extrovertido, loquaz, espirituoso.
Quando estavam juntos, suas características se equiparavam, parecendo duas
crianças.
Agora já eram de meia idade, mas
continuavam fazendo o que sempre fizeram. Certa vez, após chegarem do trabalho
às suas casas, combinaram de sair para beber no bar que sempre freqüentavam no
bairro de Fábio. Estavam comemorando a vitória de seu time de coração, visto
que torciam pela mesma agremiação de futebol. Como de hábito, ficaram até meia
noite e se recolherem aos seus respectivos domicílios. Às seis horas, chegaram
à casa de Cláudio dois policiais com mandato de prisão por suspeita de
assassinato. Cláudio se levantou atordoado, confuso e de ressaca tentando
entender o que sua esposa lhe dizia sobre os policiais, mas logo sentiu um
arrepio ao compreender.
-
Temos que levar o senhor preso, pois trouxemos o mandado, por suspeita de
crime. Afirmou um soldado.
-
Mas eu não matei ninguém e tenho uma testemunha, que é meu amigo Fábio, que
depois do bar, viemos embora dormir.
-
É justamente a vítima! O Fábio amanheceu morto no igarapé. Explicou o soldado.
Neste
momento, deu-lhe uma tremedeira de baixo para cima, deixando Cláudio em estado
de choque, entretanto foi conduzido à delegacia. Lá o delegado o interrogou.
Logo percebeu que ele era uma pessoa boa, pacata e sem maldade. Ele explicou
sua amizade de longo tempo, que nunca tiveram desavença ou briga e chorou.
Estava mais triste com a notícia de morte do amigo do que com seu cárcere. Foi
conduzido à cela. Ficou o dia todo sem comer, beber nem dormir, somente
chorando como uma criança contrariada. À meia noite, ouvia alguém falando com o
delegado de plantão. “Essa voz não me é estranha”... Sussurrou. Porém, não
identificou de quem era. De repente, o delegado apareceu com as chaves na mão e
já abrindo a porta da cela:
-
Você está livre! Determinou o chefe de polícia com um olhar misterioso e
sorriso lateral, como quem admitindo um erro e estava corrigindo. Entregou-lhe
seus pertences em silêncio. Cláudio não deu uma palavra. Saiu. Não se alegrou com
sua liberdade. Contemplou as estrelas. Ainda inculcado com aquela voz, seguiu
imediatamente para o velório do amigo.
Estou no blog CRONUTOPIA do meu grande amigo Dilso com publicação de nossos comentários, o que constitui, de certa forma, nossa correspondência. Dilso é um grande intelectual com múltiplos talentos: é analista literário, contista e poeta. Seu blog é uma valorosa fonte de sabedoria. Vale a pena conferir.
Bento! Respiração presa até ao final de seu conto que no início pareceu-me ser infantil, mas no decorrer do mesmo senti até onde você me levaria com as injustiças sociais, principalmente, se a pobreza estampa a vida! Agora, minha leitura extraverbal da ilustração da Taciane, aos 6 anos!... é fantástica! Ela contorna com seus traços bem definidos: a amizade, a vida e a morte! Perfeito! Dupla sensacional: pai e filha! Abraço, Célia.
ResponderExcluirFábio o mais extrovertido e Cláudio parecendo o mais racional... Emoção e razão cumprindo juntas o equilíbrio de duas vida intensas e de muitos altos e baixos (até os nomes têm os ritmos equilibrados: Fábio e Cláudio...). Visto Don Quixote (emoção) ter morrido ao final da obra cerventina, Fábio desequilibra sua verdade oposta ao deixar a vida...
ResponderExcluirNão há como viver de forma maniqueísta, precisamos, assim como Cláudio ou Sancho Pança, de nossa parte sonhadora também... o bem e o mal; o certo e o errado; a razão e a emoção... somos antíteses inquietadas contidas em um mesmo corpo.
Adorei a abertura analítica de dois espíritos distintos que se completam e se dividem pela morte e pela vida... Genial!!!
Belo conto quixotesco!!!
É um prazer vir aqui, entro de um jeito e saio sempre mais rico. Obrigado pelas imagens compartilhadas... Bela construção textual!!!
Minha reverência ao mestre de todas as letras!!!
Olá meu estimado amigo de Além mar e de Sempre,
ResponderExcluirBelíssima e afectuosa história.
Uma amizade verdadeira, não poderia ter tal desfecho.
Boa semama.
Abraços de luz.
Bentinho, tudo bem?
ResponderExcluirPareceu-me quase um jogo metafórico:
razão versus emoção!
As aventuras e desventuras de dois amigos que se completam.
A expressão:
“Esse voz não me é estranha”,
me arrepiou! E diz muito, para além das letras.
Perfeito Bento, voltarei para reler e reler, como faço com tudo que postas. Durante a semana, com um bom cafezinho, às vezes, visito o blog de amigos em posts que já li, assim percebo coisas diferentes!
Que desenho lindo da Taciane, querida! Ela desenha muito bem para ter apenas 6 anos! Incrível!
Abraços a ti e família, de tua amiga de sempre! :)
Muito interessante. No momento da prisão, fiquei até condoída com a informação de quem tinha falecido. E li de novo, para entender a voz (rss).
ResponderExcluirEstava além do real, mas bem real ali, para salvá-lo. Sua filhinha está mesmo desenvolvendo a arte e isso é encantador.
Bjs.
Bento
ResponderExcluirLi num fôlego só, vibrando com tantas afinidades em uma amizade onde prevalecia o respeito e admiração, mesmo tendo os dois amigos personalidades bem diferentes. Uma pena o desfecho. Realmente, senti pena do amigo assassinado.
E a Taciane continua mandando ver com seus desenhos lindos pra essa menina esperta de somente 6 aninhos.
Bjkas com muito carinho e uma semana iluminada pra vc!Beijinho pra Taci!
Bento, o conto emociona porque a maneira como a narrativa é empregada e o texto descrito faz extravasar isso além leitura. Esses dois amigos desse conto podem ser os muitos cidadãos do nosso dia a dia. Alguém que chora mais a perda de um amigo que a emoção de sua liberdade, é um ser de uma evolução espiritual a toda prova. Emocionante e exemplar, Bento. Admirável texto. Um grande e afetuoso abraço meu amigo. Obrigado por suas palavras tão gentis lá no nosso blog.
ResponderExcluirOlá, Bento.
ResponderExcluirA história é muito forte, rastreando conteúdo da vida diária que nós levamos cada um do seu jeito, com as alegrias e as tristezas. No final todos nós sofremos independente de situação social, quando passamos pelas perdas afetivas, de familiares e de amigos.
A vida nem sempre é sutil quando nos surpreende com diversas formas de dizer Adeus.
Quanto mais sensíveis somos, mais sofremos, todavia, é melhor sermos assim do que indiferentes. Penso que a vida quer que compreendamos que a morte não é o fim de tudo, nem para a gente, nem para quem morreu. Resta-nos então compreender esse significado tão forte que é a separação. Qualquer separação. Todas são doloridas, quando estamos ligados a afetos caros. É a luta do homem para superar o sentimento de separação. No livro A Arte de Amar, o autor Erich Fromm nos explica sobre esse assunto de superação, que começa lá em nossa infância.
Todo mundo passa pelo mesmo processo de luta de superação. Se todo mundo soubesse disso como é preciso, haveria uma compreensão melhor a respeito das crianças. Inclusive, o afã que a sociedade tem em consumo extravagante é muito em função da busca de superação desse sentimento de separação, que é o salto da criança (que deveria ser mais protegida), para o de adulto.
Desculpa me alongar no assunto. Ele é palpitante, apenas por isso me alonguei.
Obrigado pelos importantes comentários que faz nas minhas postagens.
A Taciane continua com os alegres desenhos. Isso faz bem.
Um abraço.
Ola querido Amigo...
ResponderExcluirLi seu conto sem respirar. Gostaria muito de fazer uma analise mais profunda..mas voce sabe..sou do barro..rs
Me deleitei com os comentarios de seus amigos seguidores....dariam um post a parte.
Gostei do ritmo que voce imprimiu no seu conto. Prendeu-me a a atencao do comeco ao fim.
Instigante e comovente..parabens pelo seu belo dom!!
ps. desculpe pela falta de acento grafico no meu comentario. estou no computador da bruna e nao sei como coloca-lo e ela nao me ensina..rs
Sua filha e uma artista!!!!!!!!!!!!diz a ela!!
Um beijo..
Bento um conto gostoso de ler que me emocionou conforme fui lendo, vc conseguiu descrever os detalhes que prende até o final. Exemplo de uma grande amizade, uma amizade assim vale ouro.
ResponderExcluirEncantador o desenho da sua filha, esta ficando uma grande artista.
Bjs e ótima semana.
Coisas de amigos que se unem e permanecerão unidos nos piores momentos....somos assim...
ResponderExcluirbjs meus
Bento
ResponderExcluirSempre me atraso nas visitas
Sempre me encanto com os desenhos de sua filhinha.
Já havia lido ontem,e hoje voltei para comentar
É muito interessante. Na metade da história já me
prendi e quando chegou no final fiquei apreensiva
com o que você descreve "essa voz não me é estranha"
Um abraço
Um conto intrigante Bento que narra uma amizade linda ao longo do tempo que certamente atravessou as barreiras da morte. Alianças eternas levamos até no caixão amigo.
ResponderExcluirUm beijo para a Taciane artista!!!
Boa noite!!
Folhas de Outono adora visitar Folhas Soltas !
ResponderExcluirBom alvorecer meu amigo querido!
Passar por tem que beber suas escritas,pq elas nos instigam na leitura.
Esse texto que virou um conto retrata uma vida tão real que conheço um amigo que passou por algo tão parecido que me emocionou profundamente.
Sua filhinha está bombando nas nuances que expressa formas tão reais...aplausos...
Bjs meu querido !
Bento, você escreveu uma bela estória, apesar de triste, mas por outro lado fico contente e me emociono quando vejo amizades tão fortes assim.
ResponderExcluirSempre fofos os desenhos da sua filha...fica lindo você usá-los junto com os seus escritos.
Boa tarde...beijos
Valéria
Professor Bento, parabéns a você sempre não há como não dizer parabéns pela profissão, parabéns pelo humanismo estampado e implicito. Parabéns pelo brilhante texto aqui. A sensibilidade humana é um abstrato de psicodelico almeijar para a grande maioria.
ResponderExcluirUm grande abraço professor.
Tá brincando né???
ResponderExcluirNem vou falar nada.
Vou esperar o fim....
Não é possível que vc vai deixar eu assim.
Nem vou dormir pensando em quem poderia ser a tal voz falando a meia noite.
Nossa Bento....Muito bom.
Mas muito bom mesmo.
Ei, Falei sério quanto a esperar pelo fim....
Magnífica crônica, Bento.
ResponderExcluirConsegues nos passar a ideia de que tua narrativa seja real, o que transcende nossas expectativas e sensações.
Abraços.
Amigo, desculpe te incomodar por aqui, mas infelizmente para temas que exigem um pouco mais de sensibilidade, tive que burlar limites estaduais para buscar um consolo na alma de um poeta de longe, longe, porém não tão distante que a vida não chegue...
ResponderExcluirEstou escrevendo esse relato com lágrimas singrando dos olhos, banhando tudo, lavando e me levando até a poesia de João Cabral de Mello Neto. Estou envergonhado de estar admitindo minha fraqueza perante os temas severinos, contudo venho para compartilhar contigo a travessia que fiz vendo uma produção televisionada de "Morte e Vida Severina"... Com o livro em mãos, acompanhei os fios que romperam com meu equilíbrio emocional... Chorei como uma criança ao ver a vida nos braços de sua mãe musicados, belamente, por nosso Chico Buarque... Não sei se estou sendo coerente, pois é difícil o ser no engôdo de tanta emoção... Estou com a alma reanimada, mas sangrada por ter que sentir o enlace do ritmo do mestre joão Cabral...
Amigo, não me leve a mal pelo desabafo, pois sei que entenderá meu lamaçal de limbo em que o poeta me colocou... Assim sinto-me purificado e amortecido pela beleza e grandeza da obra, agora, vista por outro panorama: o da verdade contida em mim...
Obrigado por ter me ouvido no silêncio dessas palavras tortas que saem despreocupadas para pedir salvação a ti poeta...
Abraço e desculpe-me por te tomar tempo com minha causas pessoais(re)vividas pela literatura que tanto amamos...
Até mais, mestre escrininhador!!!
Olá Bento,
ResponderExcluiro texto prendeu-me a atencão desde o início...a principio,pensei tratar-se de um conto infantil, para então compreender que se trata de uma história como tantas q se passam na vida. Dois seres opostos, mas que se completam e se afinizam, como deve ser na vida para o nosso aprendizado...são com os "diferentes" que aprendemos. Gostei da abertura analítica de dois espíritos distintos que se completam e infelizmentem se separam pela morte de maneira tão trágica.
Parabéns!! Beijinhos para a desenhista.
Bento, belo conto!
ResponderExcluirEste conto tem duas caracteristíca
fundamentais, o narrador que revela a
dimensâo, do valor da amizade,humana
profunda e poética, de forma simples.
Os momentos valorizados da amizade e a
confidência, a solidariedade, que faz agente
lembrar para todo sempre!
Bjs para Taci!
Beijo no seu coração!
Luci Sales.
Professor Bento, como sempre só tenho a agradece-lo. Grata.
ResponderExcluirUm abraço!
Nossa, meu amigo, não sei se mereço tantos epítetos. Tu és um ser generoso e, além, nessa mesma medida, talentoso!!!
ResponderExcluirAbraço para ti e para a pequena grande Taciane!
Bento,
ResponderExcluirConto bem amarrado, bem detalhista, que nos prende do princípio ao fim. Não sei se não entendi direito ou se é o tardar da hora, mas me confirme uma coisa: não seria Cláudio ao invés de Fábio, na antepenúltima linha?
Beijos para a sua filhinha, que já promete na arte de desenhar.
muitos beijos
Suas visitas são preciosas porque deixa palavras sábias e demonstra a sensibilidade que o guia.
ResponderExcluirBjs.